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15 abril, 2011

Caso Mário Covas

Fonte: Revista Época

Edição 140 22/01/2001
SAÚDE
Sofrimento anunciado
A conduta de Covas, ao expor sua doença, tangencia os limites da privacidade de um homem público
Poucas vezes um político expôs a luta pessoal contra uma doença grave de modo tão escancarado como fez o governador Mário Covas. Um raro antecedente está no caso do ex-ministro da Fazenda Dilson Funaro (1933-1989), artífice do Plano Cruzado. Em 1986, ele enfrentou a reincidência de um câncer linfático no exercício do cargo. O comportamento-padrão na política brasileira é outro. Em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves morreria sem assumir o cargo, após um calvário de 38 dias. Fora submetido na véspera da posse a uma cirurgia para extirpar uma suposta diverticulite. Era um tumor no intestino, que ocultara durante meses.
A transparência de Covas permeia um longo histórico de internações. Teve início em 1986, quando era candidato a senador e sofreu um enfarte. A cirurgia cardíaca não despertou o interesse de agora, mas foi divulgada abertamente. A mesma estratégia – tratar tudo às claras – foi novamente utilizada quando se descobriu, em novembro de 1998, um tumor maligno na bexiga. A gravidade da doença foi apresentada sem eufemismos. Tratava-se de um câncer altamente agressivo, com 70% de probabilidade de voltar a atacar mortalmente o organismo. Mas havia esperança: o nódulo estava restrito à bexiga. Com a remoção do órgão, manteve-se a possibilidade de cura, o que encheu o governador de otimismo e tornou mais leve o trabalho dos médicos na divulgação da doença e dos tratamentos.
A disposição de lutar publicamente produziu episódios contristadores desde que a moléstia ressurgiu, em novembro. A erosão física do paciente, que continuou a participar de atividades oficiais, ampliou a demanda de informações sobre seu estado. Os médicos que o atendem acabaram falando mais que o planejado. “Em princípio, não acho certo esconder o estado de saúde de uma pessoa pública, mas me recuso a expor minúcias da vida privada”, pondera o gastroenterologista Raul Cutait, da equipe médica. Cutait acredita que os médicos devem abster-se de revelar intimidades – por exemplo, os momentos em que o paciente sentiu dor, chorou ou caiu. No caso de Covas, isso não dependia da vontade dos especialistas. Ele chorou em público, não camuflou expressões de dor e, numa cerimônia oficial realizada no dia 17, precisou ser amparado por assessores para não cair.
Manuais de ética informam que a relação entre médico e paciente é protegida por sigilo. Quando o doente é um homem público, a saúde torna-se assunto de interesse coletivo. Nos Estados Unidos, os presidentes submetem-se a exames anuais, cujos resultados são apresentados à sociedade. Na semana passada, soube-se que Bill Clinton teve um tipo de tumor de pele sem gravidade. O ex-presidente Ronald Reagan enfrentou abertamente um câncer no intestino e ajudou a diminuir o estigma da doença. Num exemplo oposto, o presidente François Mitterrand governou a França por 14 anos escondendo a metástase de um tumor de próstata. Nos obituários dos jornais franceses, morrer de câncer ainda é um tabu inviolável. A causa de morte é a genérica “longa enfermidade”.
A equipe médica de Covas cometeu deslizes. No dia 22 de novembro, o governador submeteu-se a uma cirurgia para remover tumores no reto e no intestino. Em entrevista concedida depois da operação, os cirurgiões deixaram escapar uma palavra que não havia ressoado nos ouvidos do paciente: metástase. Temido pelas vítimas da doença, o termo designa o momento em que o câncer, até então restrito, lança sementes na corrente sanguínea e invade outras regiões do corpo. Covas sabia o que os médicos haviam encontrado. Mas ficou chocado ao ler a palavra nos jornais.
Outra confusão aconteceu no dia 15. O boletim que anunciaria a metástase no cérebro devia ser divulgado à tarde. A notícia vazou de manhã, quando o governador participava de um compromisso oficial. Ele soube do que ocorrera pelos jornalistas. Só estaria com os médicos na hora do almoço. Depois do incidente, a equipe tentou evitar mais uma entrevista coletiva. Rendeu-se por insistência do paciente. “O que o senhor quer que eu conte?”, indagou o oncologista Ricardo Brentani. “Fale o que o senhor acha que deve falar”, respondeu Covas. “Não quero falar nada. O boletim já diz tudo”, retrucou Brentani.
David Uip, médico particular de Covas há 15 anos, recebeu críticas pela forma atabalhoada que marcou a divulgação de algumas informações. “Sempre me limitei a falar o que foi autorizado pelo governador”, defende-se. Depois da cirurgia realizada em novembro, os médicos sabiam que as sementes de metástase poderiam dar origem a outros tumores. Tentaram um novo tratamento, a imunoterapia, técnica experimental para estimular o organismo a reagir ao câncer. Há duas semanas, o governador recebeu as primeiras doses das drogas. Em seguida, ele apresentou dores de cabeça, dificuldades de fala e de locomoção. Não eram efeitos do remédio, mas sintomas de uma rara forma de metástase – a carcinomatose meníngea. O mal ataca menos de 1% dos pacientes que tiveram tumor de bexiga.
Células cancerosas proliferaram em grande quantidade na meninge, membrana que reveste o cérebro e a medula espinhal. Essas células flutuam no liquor, líquido que preenche a meninge. O crescimento das células pode entupir minúsculas aberturas da membrana. Com a obstrução, o liquor se acumula em cavidades e passa a pressionar o cérebro. No caso de Covas, afetou-lhe a capacidade de se expressar e travou-lhe os passos. A doença provoca ainda a falência gradual do cérebro. A depender das regiões afetadas, o paciente pode ter lapsos de memória, problemas motores ou convulsões.
Na manhã da quinta-feira, Covas internou-se no Instituto do Coração e antecipou o início de um novo tratamento quimioterápico. O medicamento, injetado na meninge por meio de uma agulha, é o Metotrexate. Busca deter a proliferação das células malignas e aliviar a pressão no cérebro. Como é aplicado diretamente na região atingida, não provoca efeitos como queda de cabelo e enjôos, típicos da quimioterapia tradicional. A literatura médica informa que o tratamento raramente consegue produzir períodos de sobrevida superiores a um ano. Se Covas reagir a contento, terá ao menos a chance de cumprir sua sina de guerreiro sem sentir tantas dores.
Alexandre Mansur e Fabrício Marques

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